O Artista

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Crítica de Frederico Morais | Crítica de Sheila Cabo | Crítica de Vera Lins


Estou diante de uma aquarela de Norões e me vem à memória uma frase que li num pequeno cartaz de um grupo teatral, colado num muro escondido de Olinda pós-carnaval, ainda fedendo à urina: se cobrir vira circo, se cercar vira hospício. Esta aquarela, que tenho diante de mim, como muitos desenhos e litografias, que virão a seguir, mostram temas circenses: equilibristas, malabaristas, domadores, mágicos, trapezistas etc. Tudo nesses trabalhos, se passa rapidamente e de forma desordenada: é um estilhaçar de situações, entre cômicas e grotescas, entre memória e denúncia, entre autobiografia e reflexão, entre cotidiano e história da arte. E corresponde ao seu modo de expressar o mundo (em sua fase inicial, gráfica, e Norões é um desenhista notável): anotações, croquis, rabiscos, grafitos, um mundo apenas esboçado, gênese permanente, sempre inconcluso, aberto e, nele, o homem é, por enquanto, mero espectador.

Mas há também a contraface disso: o mundo que se esvai, que se desfaz, carcomido, erodido, apodrecendo, no qual o homem, agora ator, convive com ratos, jacarés, sapos, lixo.

Pouco a pouco, entretanto, percebemos que este circo não tem picadeiro nem platéia estável, nem está coberto por uma lona estropiada. O que vemos, então, é um céu de cores sombrias, dominando a urbe solitária, assustadora. Da mesma maneira, esta cidade-mundo-circo não tem ainda cercas visíveis ou palpáveis, mas, a todo momento, o artista revela indícios de objetos-situações que dificultam qualquer gesto de libertação: um muro isolado, a escada que não ajuda a escalar este muro e não leva a lugar nenhum, a massa de edifícios vista do alto e de longe, um edifício tragado pelas águas, um monte de lixo expondo como troféu a vassoura inútil.

E se por acaso conseguimos penetrar nesses interiores domésticos da cidade-prisão, o que vamos encontrar é a mais profunda solitude, a cadeira vazia que poderia ter sido de Van Gogh, uma outra escada, a roupa fantasmagórica, um trenzinho de ferro saindo do túnel do tempo – ou da infância.

Parece o cenário de um teatro absurdo, o homem miniaturizado no sofá gigante, ou quase afogado, sem ar, sob o enorme colchão de plumas, um enorme cubo amassando o que poderia ser o pincel do artista. Norões teve experiência como cenógrafo, mas esta dimensão cenográfica de sua obra gráfica e pictórica pode ser apenas uma fachada para encobrir seu desconforto, sua dor, assim como o humor de sua fase gráfica pode ser apenas uma forma de escapismo, um modo de enfrentar o medo, a timidez e a solidão. Mas, quando mergulhamos fundo em sua obra (e, aliás, esta imagem do mergulhador é recorrente no artista), o que sentimos é a fragilidade do homem face ao mundo, sua incapacidade de mudá-lo, de superar as barreiras metafísicas do ser, dar um sentido às coisas, encontrar algum porto temporário, abrir uma clareira na floresta.

Pois a sensação que temos diante destes interiores vazios, com seus objetos abandonados, é que eles são a autobiografia do autor. O artista esteve ali sentado naquela cadeira, naquele banco, até bem pouco ele estava contemplando o trem fantasma, assim como percorreu os claro-escuros de Rembrandt e até promoveu um encontro entre seus personagens e a mulher de Manet que se lava na bacia.

Enquanto o papel ou a tela serviram como refúgio, enquanto o humor era uma saída e ele podia até dizer, sem arrogância, que não tinha medo do papel, nem dele mesmo, enquanto, enfim, pode equilibrar-se no mastro situado no topo do edifício, como o malabarista no picadeiro, ele sobreviveu e nos deixou como testemunho, obras pungentes. Mas, quando esse sentimento de insegurança que queria por no papel foi ficando cada vez mais nítido, denso, pesado, e ele não pode resistir à força do vento ao cansaço da vida, então, soltou os braços e mergulhou no abismo.

Eu deveria falar das litos de Luiz Antonio Norões, de sua arte. No entanto, divaguei. Ele soube, com muita competência, distinguir, em sua obra, o gráfico e o pictórico, dando autonomia a cada campo expressivo. Mas, da mesma maneira como, vendo suas litos, me lembro de suas pinturas, eu vi em cada detalhe de sua obra, o prenúncio da morte. Isto não é boa crítica, eu sei, porque a obra sobrevive ao artista, mas o que me emociona agora, escrevendo esta apresentação, é a tristeza que as obras estampavam no rosto do artista.

Frederico Morais
Rio, março de 1992

Texto de apresentação da exposição de Litografias
de Luiz Norões no MNBA de abril a maio de 1992