Crítica de Frederico Morais | Crítica de Sheila Cabo | Crítica de Vera Lins
Entre o palco e a tela, imagens cenográficas de um pintor
O pintor que trabalha sobre papel com aquarelas ou com telas a óleo, por mais que estenda suas dimensões tem a bidimensionalidade como limite. Pode romper com o quadro como suporte, criando objetos e instalações o que já se faz uma tradição do moderno ao contemporâneo. O teatro, no entanto, lhe oferece a possibilidade de interferir na encenação de imagens que adquirem movimento e carnalidade, ganhando corpo concretamente no mundo.
Incursões no mundo do teatro aconteceram na obra de um artista plástico da Geração 80, que, por sua morte súbita, não deu continuidade a uma obra que ia aceitando os desafios da cenografia. Luiz Norões trabalhou entre 1987 e 1989 nas peças Luz nas trevas e Tambores da noite , dirigidas por Luiz Fernando Lobo e encenadas pelos alunos da Escola Martins Pena, também em Germania e Hamlet-máquina de Heiner Müller, com Gerhard Dressel na direção dos mesmos alunos e depois na peça Baal , que teve a direção de Moacyr Góes. Na última, o esboço de cenário previa uma parede pintada de azul que foi mantida na sua realização, mas junto com outras, revestidas de lonas de caminhão, criando uma tensão entre cores e materiais, extremamente dramática, contrastando leveza e peso, infinitude e imediaticidade.
Criava também o material gráfico das peças como cartaz e programa. O cartaz de Baal foi uma litogravura em que um homem está soterrado pelo mundo, algo redondo e imenso que deixa apenas sua cabeça de fora. O programa é composto por vários croquis, feitos enquanto ao atores representavam, dando-lhes traços de bufões. Para outras peças de Moacyr Góes desenhou também os cartazes como Fausto e Os Cegos.
Luiz Norões trabalhou entre 1979 e 1989 com desenho, litogravura e pintura, desenvolvendo uma linguagem singular que toca o neo-expressionismo, revela uma reflexão estética original e extremamente crítica com uma dramaticidade teatral. Além da mostra Geração 80, em que ocupou uma parede inteira de uma sala com a imagem de um equilibrista de bicicleta sobre um fio que ia de um extremo ao outro, em outras exposições como Território Ocupado (1987), também na Escola de Artes Visuais, estendeu suas imagens ao espaço da sala.
A presença da figura humana é constante em seu trabalho, mas sempre questionada, pois atravessada pela imaginação do artista que a recria lúdica, dramática e ironicamente. Talvez essa figuração irreverente e trágica, um homem ajoelhado observando um trem de brinquedo, outro hasteado a um mastro como uma bandeira, outro como um boneco, encolhido e afundado numa poltrona, jogue com os mesmos extremos que autores como Brecht, exploram nos seus personagens. Um desejo de transcendência esbarra nos limites da condição social e humana que impõe uma resistência que não se deixa vencer. Esse desejo tensiona as figuras entre o sublime e o grotesco, as explode como Baal ou as leva ao naufrágio. A experiência de tempos sombrios marca uma subjetividade que não controla mais o mundo, mas tenta vivê-lo a partir de suas paixões.
As imagens de Luiz Norões são inusitadas no panorama da arte brasileira, pela tragicidade com que confrontam o espectador. Como o artista mesmo afirma: “Faço imagens – nem sei se estas imagens que construo estão em mim ou no mundo. Tenho refletido sobre o trabalho de diversos artistas: admiro o expressionismo de Otto Dix e George Grosz, divago com os românticos como Daumier e Delacroix e noutro dia estive numa esquina que Goeldi desenhou (debaixo da chuva). Pude ver a recuperação da pintura através de artistas como Dokoupil, Sandro Chia, Immendorf. Diante do branco da tela, tudo que tento segurar através de croquis, desenhos, aquarelas, desaparece e sou invadido pelo desafio de preencher.”
Linguagens radicais muitas vezes ficam à margem do cânone da pintura e da literatura, por uma tradição de uma memória curta e apressada na cultura brasileira que, nas artes plásticas especialmente, sofre a pressão violenta do mercado. À crítica é importante rastrear os sinais de visões originais e contundentes, para criar um pensamento que possa resistir à imediaticidade dos critérios que se articulam. Luiz Norões (1954-1989) desenvolvia um trabalho que vinha obtendo reconhecimento, com várias exposições coletivas e três individuais na galeria Andrea Sigaud em 1981, na Galeria Macunaíma da Funarte em 1983 e na Galeria Cândido Mendes de Ipanema em 1987. Em 1986 foi premiado na 7 ª Mostra de Desenho Brasileiro em Curitiba. Em 1989 se suicidou, quando preparava uma nova exposição. Hoje tem seu trabalho de litogravura no acervo do Museu Nacional de Belas-Artes. Foi professor da Escola de Artes Visuais do Parque Lage e aluno de Roberto Magalhães, Rubem Gerchman e Antônio Grosso.
Sua curta vida, no entanto, não o impediu de deixar uma obra. A distância que se obtém hoje, com mais de dez anos de sua ausência, permite ver, nos trabalhos que deixou, a contundência de sua linguagem, irreverente, irônica e ao mesmo tempo trágica, que continua a surpreender e possibilita a reflexão sobre a arte que se produziu nos anos oitenta, do ponto de vista crítico e histórico.
Vera Lins
Revista O percevejo, 2001-2002
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